Versos & Contos

Este é um espaço reservado para os contos e poemas dos personagens jogadores.


Recordações: Carta

Por Vallen Genevan

(Parte 1 de 5)

Indago-me quanto tempo se passara desde nosso último encontro... Bem, não sei ao certo, mas a lembrança percorria intensamente minha mente, naquele cair da noite. Habituado estava eu a contemplar o teto escuro e frio da hospedaria na qual respousava; Havia se tornado um hábito. Decerto a lembrança não deixava espaço para outras preocupações... Um ruído emergia do silêncio, dissipando minha contemplação; Um lampejo de curiosidade atingiu-me, subita e inesperadamente, ao mesmo tempo em que o ser que surgia do nada, fitando-me com um olhar sinistro, desaparecendo em seguida tão furtivamente quanto apareceu; Esse trazia uma mensagem consigo... Uma carta, agora jazia sobre um criado mudo, exibindo sua relevância num simples carimbado em cera derretida; Naquele momento, toda a reflexão que fizera concretizava-se: O último encontro haveria deixar de ser, pois um outro, breve e inevitável, haveria de acontecer.

Em meus aposentos, meus sentidos recobravam-se de um breve sono, ao percorrer a carta com a atenção que lhe era merecida; Sim, o passado, ainda recente em minha mente, exigia um préstimo de minha parte, o qual não poderia negar. Dirigi-me a uma janela, da qual uma brisa gélida insinuava-se para o interior de meus aposentos; Um céu limpo e profundamente escuro; Não havia tempo para despedidas, fossem estas para um desencontro breve ou não. Observei atentamente meu leito e pertences pessoais, pois não haveria momento mais oportuno... Rumei em viagem naquela mesma noite, tão misteriosamente quanto as circunstâncias que motivavam-me, com uma carta em mãos e para um destino desconhecido.

A noite, mãe severa daqueles que se escondem da luz, permanecia escura e fria, e as horas que se sucederam em viagem deterioravam cada vez mais minhas energias, assim como as de minha montaria. Uma pequena clareira em meio a um punhado de árvores ao longo da estrada sugeriam um local para acampar, onde poderia descansar. Sons sobrecomuns imergiam no local, perturbando-me em meu sono; Os animais também pareciam compartilhar de tal sentimento. Gemidos inumanos acompanharam o festim de sons maquiavélicos, gerando uma atmosfera perigosa... Não sei ao certo quando dei-me conta disso, mas rapidamente fui tombado ao chão; Algo havia golpeado-me...

Ainda lúcido, vislumbrei uma criatura abrutalhada, negra em sua pelugem, avançando hostil e agilmente sobre minha condição desfavorável... Se nada fosse feito, seria meu fim. O ruído da floresta ainda atormentava minha atenção, agora concentrada na luta que se seguiria; A criatura, entretanto, parecia convicta em intuito de dilacerar-me. Sucessivos golpes fizeram-me enconstar numa árvore; minha respiração ofegante; minha morte muito próxima... A estranha criatura avançava para desferir seu derradeiro golpe, quando num abrir e fechar de olhos, um torpor de sangue irrompeu o local; O sangue derramado não havia mais sido o meu: A lâmina, a qual carregava, quente e com chamas tremulantes, encontrava-se agora enterrada no coração da criatura, que agonizava em seu leito de morte; Esta havia deliberadamente se projetado em direção ao golpe fatal.

Perplexidade e horror tomaram minha face, rubra com sangue alheio, enquanto fitava a expressão de dor e alívio conflitantes da criatura, que pereceu logo em seguida. Sentei-me junto a uma árvore, ferimentos profundos percorriam meu corpo, mas estranhamente senti-me mais preocupado com o cadáver prostrado diante de mim... Decerto que ela percebeu a lâmina em fogo, mas nada que impedisse minha morte rápida pela feracidade de seus golpes... Então por que satisfei-se com a própria morte imersa numa expressão de alívio? Os reinos certamente guardavam estranhas criaturas e segredos dentro de si... “Cada atitude que tomamos constrói nosso futuro e determina o que seremos para o resto de nossas vidas” ...Lembrei desta passagem num dos meus antigos poemas; Redenção... Redenção talvez? por minhas mãos? mas por que? Sou apenas um covarde; meus olhos só vislumbram sangue... A morte já não era mais uma companheira assustadora assombrando meus passos... Foi quando então o cheiro e a frieza da morte retiveram a lembrança do fardo de meu destino; Tudo que poderia-se fazer agora era seguir em frente. Havia muitas pendências a se cumprir e pagar...

Recuperando-me de meus ferimentos, urgi em abandonar aquele lugar de repouso, como se os próprios deuses condenassem minha existência e permanência ali; As vozes inquietas certamente sussurraram seus lamentos pelo resto da noite, mas já não havia mais ninguém lá para ouví-las; Num lugar mais apropriado, repousei e prossegui em minha jornada ao raiar dos primeiros feixes de luz do amanhecer...

Transcorridos alguns dias de pequenas adversidades e de longa viagem, fui trazido por meu destino a um pequeno acampamento em meio a uma densa floresta; A carta continha mensagens referentes a este local em particular que não poderia haver resquício de confusão em minha mente, assim como as indicações sutilmente deixadas e escritas na dita mensagem, as quais decifrei sem grandes dificuldades... Enfim atravessei a pé o caminho que levava a uma pequena luminosidade, tremulhante em sua luminescência, a qual pude identificar como uma fogueira, com silhuetas humanoides situadas ao redor dela. Silhuetas essas estranhas, que se tornaram familiares com minha aproximação ao grupo; Sim, haviam também estranhos, que me observaram com desconfiança e alerta, mas um breve aceno de mão tranquilizou-me quanto a validade de minha vinda: Diante dos demais, firmava-se de pé uma figura feminina, peculiar em sua postura imponente e ainda tão bela quanto minhas recordações haveriam de conceber, demonstrando em seu corpo elfico que os anos apenas serviram em seu propósito de torná-la mais poderosa; Profundos olhos negros agora fitavam meu ser, juntando-se aos demais; Amigos do passado e estranhos observavam-me com curiosidade... Sim, já se passou muito tempo desde nosso último encontro, Lymnis...

Fim da parte 1


Trecho do Conto "Taverna dos Sonhos"

Por Vallen Genevan

“A vida dos mortais transcorre como os onipotentes deuses determinam, acalentados no esplendor de suas moradas, eles determinam tudo o que acontece. O futuro é algo certo e o destino já está traçado para todos nós...“

De súbito, uma tenra risada. Interrompo meu monólogo, percebendo a proximidade de uma das criadas da estalagem, observando-me com espanto e curiosidade, trazendo consigo uma moringa e uma terrina.

- Algo que despertou vosso interesse em minha reflexão, minha querida? -, indago da forma mais gentil possível, a fim de não amedrontá-la.

- Perdão, meu senhor, não queria incomodá-lo. Por favor, ignore meu atrevimento -, ela responde, retirando-se visivelmente assustada. Ela havia prestado atenção, decerto seu sorriso, mero reflexo de sua opinião pessoal, despertara sua opinião crítica; Entretanto, uma garota simples, oriunda de pais humildes, não havia sido contratada para emitir sua opinião, a expor suas idéias, por mais simples que fossem, aos freqüentadores da estalagem; Apenas seu corpo tinha serventia aqui; não sua mente.

Peço um pouco de vinho, a ser trazido à mesa onde me encontrava pela mesma moça, ainda com olhos de preocupação em sua face. O vinho então é colocado à minha disposição, no mesmo instante em que, mais uma vez, indaguei - Você acredita em destino, minha jovem?

Ela permanece parada, paralisada por sua ignorância em relação ao teor de minhas palavras. Insisto - Acreditas mesmo que os deuses tenham reservado tal destino para teus dias?

Subitamente, ela responde, com clareza e convicção inesperadas - Apenas os tolos acreditam que deuses determinam suas vidas; Humilde e fraca onde estou, cheguei graças as minhas próprias forças; Se dependesse apenas de deuses, morta já estaria numa vala escura e suja; forças tenho para mudar, assim como tive para expressar meus pensamentos a ti.

Aquelas palavras, entoadas de forma brusca, porém imponente, despertaram-me de minha própria arrogância, golpeando-me como uma arma afiada de ideais sobre um opressor, que agora tombava inerte... Minha repulsa havia desaparecido; Havia subestimado alguém que agora, diante de mim, sorria numa expressão de alívio e misericórdia, olhando-me de volta como se toda impressão que eu tolamente passara tivesse se extinguido. Coloco minha mão sobre a dela, num gesto de reconhecimento - Tens razão, minha dama. Apenas os mortos não podem mais sonhar, mudar seu amanhã. Cada atitude que tomamos constrói nosso futuro e determina o que seremos para o resto de nossas vidas. Apenas clamo para que eu consiga trilhar por um bom caminho... Poderias me servir um pouco mais de vinho? Obrigado.