© Estêvão Chaves Monteiro


O Que é Qi?

氣: Qi, Ch’i, Hei ou Ki* é um termo que se tornou bastante conhecido no Ocidente através das artes marciais, medicina alternativa (Acupuntura), misticismo (New Age), vídeo-games (Street Fighter) e desenhos animados orientais (Dragon Ball). Apesar de tanto mistério e fantasia, e de ser um conceito fundamental da religião Taoista, em última análise Qi é uma palavra trivial e significa, na tradução mais simples, apenas “bioenergia”. A origem do ideograma e do conceito é “ar” ou “vapor”: . Desde muitos séculos atrás, os chineses já compreendiam a importância da respiração adequada para a saúde e a disposição física e mental do ser humano. Assim, a idéia da respiração se misturou com a energia vital, a bioenergia, e agregou outros conceitos, como a nutrição proporcionada pelos alimentos e, assim, a saúde em geral.

* As quatro transcrições estão nos métodos Pinyin (Mandarim, oficial), Wade-Giles (Mandarim, mais legível para ocidentais), Yale (Cantonês) e Romaji (Japonês)/McCune–Reischauer (Coreano); um mesmo conceito e ideograma com pronúncias diferentes em línguas diferentes.

Naturalmente, a medicina tradicional chinesa gira em torno do Qi. Os meridianos da Acupuntura são atribuídos à circulação do Qi no corpo. A medicina ocidental vem estudando a Acupuntura aos olhos da ciência, e as descobertas tem sido promissoras; mas, ao que tudo indica, as agulhas atuam sobre o sistema nervoso, não sobre canais invisíveis de energia. É claro que sabemos que nosso cérebro e nervos funcionam mediante comunicação de impulsos de carga elétrica. E os antigos estudiosos chineses já eram adeptos da lógica, da experimentação, da análise empírica. Então, em algum nível é certo que a Acupuntura trabalha sobre a bioenergia e os sentidos humanos. Já que a Acupuntura enfoca em pontos, apesar da teoria girar em torno dos meridianos, os meridianos podem ser apenas um modelo obsoleto e equivocado de ligação entre os pontos identificados empiricamente. Tudo indica que Acupuntura funciona, mas não exatamente pelas razões que alega. Não podemos esquecer, entretanto, que assim também ocorre com a Ciência: o fenômeno observado leva à formulação de hipóteses, que são desenvolvidas para teorias e assim compõem os modelos científicos, que são continuamente revisados e corrigidos; uma teoria incorreta não necessariamente invalida todo o trabalho, mas dá lugar a uma teoria mais próxima da realidade. Assim foi com a molécula, o átomo (que se supunha indivisível) e as partículas subatômicas.

Nas artes marciais, mais idéias foram incorporadas ao Qi. As artes marciais chinesas se desenvolveram nos contextos das religiões Taoísta e Budista, ambas focadas em auto-desenvolvimento, cultivo de saúde e energia, e meditação. A perfeição marcial era desenvolvida em templos e mosteiros, pelos próprios monges e sacerdotes, como extensão natural das doutrinas de suas religiões. É o caso dos renomados Shaolin e Wudang. Além do cultivo da saúde, disposição e respiração, fundamentais à prática marcial, esses antigos mestres estudaram a fundo a biomecânica, ou seja, as formas físicas como o corpo se movimenta, age e reage à força mecânica; a dinâmica das articulações, a transmissão de energia da base do corpo aos membros superiores com as posturas adequadas, o equilíbrio corporal, a percepção aguçada da força exercida pelo oponente, que reflete sua intenção. Assim, no sentido de energia pessoal, o termo Qi passou a se aplicar às energias mecânicas que atuam sobre o combatente. Harmonizar teu Qi com o do oponente significa simplesmente estar atento às suas intenções e movimentos e usar esta percepção ao teu favor. Baixar teu Qi para ganhar força estática e equilíbrio significa baixar teu centro de gravidade para reforçar a estabilidade estrutural da postura. Explodir teu Qi significa direcionar todo o teu corpo em um movimento harmônico para a máxima eficiência mecânica em golpes explosivos. Não é difícil perceber que tudo o que estamos falando aqui é pura Física, não Metafísica. É sabedoria milenar, desenvolvida em contextos religiosos, mas é Ciência. Os mestres de artes marciais são mestres de Biomecânica aplicada a combate.

É claro que a dimensão emocional e mental do Qi tampouco deve ser ignorada. Cada vez mais, o Ocidente reconhece a importância do cultivo do equilíbrio emocional para a saúde humana e o desempenho de todas as suas atividades. Naturalmente, os antigos ensinamentos taoistas e budistas enfocam este aspecto e ele também veio a se confundir com Qi. Simplesmente, uma mente perturbada desperdiça energia, perde foco e não consegue direcioná-la de maneira sensata e eficiente.

Enfim, a ênfase no termo Qi e a convergência de tantas idéias e princípios a este termo foi determinada pelo contexto religioso do seu desenvolvimento. Semanticamente, porém, é um termo problemático, pois ao representar muito, acaba definindo pouco; é amplo demais para uma comunicação clara e eficaz. Alguns terapeutas e professores valem-se do mistério para atrair alguns públicos-alvo; de fato, existe todo um mercado para o misticismo moderno. Mas, com o nível de esclarecimento hoje globalizado e com a ciência sendo detalhadamente estudada nas escolas, torna-se incoerente nas culturas atuais apegar-se a um termo tão obsoleto e vago e enfocar sua história mística. Está claro que os fenômenos descritos não são metafísicos, mas sim físicos, fisiológicos, mecânicos, psicológicos. Relacionar o auto-desenvolvimento a espiritualidade é natural e perfeitamente válido, mas é importante perceber que a perspectiva metafísica e o credo não são requisitos para a eficácia das técnicas marciais e terapêuticas que se desenvolveram em torno do conceito de Qi. Um volume substancial dessas técnicas tem efeitos observáveis, mensuráveis e explicáveis pela Ciência; dar a elas cor de mistério e misticismo é a opção de cada um.